Depois da escola, as gêmeas Maria Luiza e Maria Clara, de 9
anos, têm a agenda cheia: oficinas de inglês e de informática, balé, esportes e
reforço pedagógico se alternam às tardes. Elas também brincam, claro, e se
desenvolvem cada vez mais em aspectos como criatividade, imaginação, cooperação
e comunicação. São miúdas para a idade, mas nem de longe se parecem com quem
eram quando chegaram ao NEAC – Núcleo Especial de Atenção à Criança, em Campo
Grande, cinco anos atrás.
“A fome era maior que a curiosidade e as irmãs tinham dificuldades de aprendizagem. Eram arredias e desconfiadas”, conta Selma Pacheco, diretora de projetos do NEAC, que faz atendimento a 200 crianças e adolescentes.
A equipe de serviço social realizou uma visita domiciliar e observou que a casa onde as Marias moravam com a mãe, desempregada, e com três irmãos adolescentes, não possuía banheiro.
Uma campanha batizada de “João de Barro” foi iniciada para a
construção do banheiro da casa e algumas outras melhorias urgentes, como
instalação de piso no quarto e aquisição de camas. Tudo comprado com doações e executado
com mão-de-obra voluntária.
A mãe foi encaminhada para uma vaga de trabalho e em pouco tempo a vida desta família se transformou, com impacto direto no rendimento escolar de Maria Luiza e Maria Clara.
No NEAC, as gêmeas são participantes muito ativas do
Mercadinho Ecológico do Projeto TransformAção – Transformando Lixo em Educação.
Elas levam garrafas PET, latinhas de alumínio e outros materiais recicláveis para
trocar por eco-reais, que são usados para adquirir brinquedos e materiais
escolares.
“Hoje, as Marias estão mais motivadas, com mais autoestima e, principalmente, felizes. Elas colaboram, respeitam os amigos e se concentram nas oficinas. Isso nos leva a refletir sobre como pequenas, mas importantes intervenções na vida de uma família podem afetar todo o seu contexto”, conclui Selma.
A vida é
cheia de momentos que nos dão “cliques” sobre alguma realidade que, até então,
desconhecíamos. É como se um véu saísse da frente dos nossos olhos e então
passamos a enxergar coisas com mais clareza. Por isso, no Dia do Cinema
Brasileiro, o Instituto Phi fez uma lista de documentários nacionais que têm
esse poder: abrem nossa cabeça para alguns temas sensíveis da realidade brasileira
ou mesmo mundial, com histórias inspiradoras de pessoas que tomaram consciência
de seu próprio poder de transformação e estão mudando vidas.
Quem se
importa (2013)
Disponível para aluguel no Vimeo: http://bit.ly/2WOVuuu
Dirigido
pela brasileira Mara Mourão, o longa metragem registra a trajetória de 18
empreendedores sociais, homens e mulheres que têm como ponto de partida uma
demanda social a atender (do analfabestimo à produção de energia limpa) e, como
método, a ação. Filmado em sete países, a produção pretende estimular jovens
que, como muitos personagens do documentário, estão tentando dar uma nova cara
ao mundo, mais justa e sustentável.
Conectados
Transformamos (2014)
Disponível gratuitamente no YouTube: http://bit.ly/2IW6egJ
O filme,
organizado pela Social Good Brasil, apresenta seis histórias de pessoas que
decidiram agir pela mudança que desejam ver no mundo. São histórias como a do
Projeto Integrar, que prepara alunos para ingressar nas universidades, e do
Banco de Maricá, um programa de moeda social. Inspiração e impulso para quem
pensa em empreender socialmente.
CenaRIO:
Sustentabilidade em Ação (2016)
Disponível gratuitamente no YouTube: http://bit.ly/2KqSYUB
O
documentário produzido pelo Centro Mundial para o Desenvolvimento Sustentável
do PNUD foi feito por 30 estudantes cariocas que catalogaram iniciativas que mostram
a força empreendedora do povo brasileiro – gente que passa longe de
celebridades do mundo tecnológico ou inovadores com Ted Talks famosíssimas. Os
personagens são 16 microempreendedores que conseguiram incorporar práticas
sustentáveis aos seus negócios diários, da arquitetura ao comércio, passando por
moda e artesanato.
Nunca me
Sonharam (2017)
Disponível no YouTube para compra ou locação: http://bit.ly/2WQAQKE
Lançado em 2017, o documentário brasileiro dirigido por Cacau Rhoden e produzido pela Maria Farinha Filmes discute a situação da educação pública do país a partir da visão de jovens de dez estados brasileiros. A pluralidade das juventudes, a formação de identidade na adolescência e as pressões para tomarem parte na sociedade são questões bem exploradas por este documentário inspirador.
Histórias
da Fome no Brasil” (2017)
Disponível gratuitamente no YouTube: http://bit.ly/31KB2dg
O filme mostra
uma cronologia da fome no país. Do Brasil Colônia, onde foram plantadas
as sementes das desigualdades sociais, até as políticas públicas que culminaram
na saída do Brasil, em 2014, do Mapa da Fome divulgado pela ONU. O filme aponta
o pensamento daqueles que “nadaram contra a corrente”, como Josué de Castro,
Dom Helder, Betinho e tantos outros, que acreditaram que a fome era um mal
reversível, ocasionada pelos homens e suas políticas. Quando foi finalizado, o
filme não previa que o Brasil voltaria aos patamares de Vxtrema pobreza e
estaria sob sério risco de voltar ao Mapa da Fome.
“Não
deixe a Peteca Cair” (2016)
Veja o trailer no Vimeo: http://bit.ly/2MVdHC7
Quando Sebastião resolveu transformar um terreno íngreme e lamacento em quadra de badminton para ensinar as crianças da comunidade da Chacrinha, Zona Oeste do Rio, ele foi chamado de louco. O esporte era praticamente desconhecido e pouco praticado no país. Quase 20 anos depois, o Brasil participa pela primeira vez dessa modalidade nas Olimpíadas, graças a uma equipe apaixonada e a uma metodologia única e inovadora que une o esporte ao samba carioca. O documentário dirigido por Kátia Lund e Fifi Fialho e produzido pela Jabuti Filmes é o primeiro de uma série que apresenta projetos culturais e esportivos de cinco comunidades cariocas como alternativa de geração de renda e “commodities sociais”. Além do Miratus Badminton, são eles o Circo Crescer e Viver, o Nós do Morro, o Jongo da Serrinha e o Cinema Nosso.
“Há quem alegue não conseguir escolher uma ONG para a qual doar dinheiro, com medo de que ela não seja idônea. Eu digo: ‘Escolha com o mesmo rigor usado para contratar o CEO da sua empresa”. A frase é do médico e filantropo José Luiz Egydio Setúbal, um dos herdeiros do Itaú, e foi dita em entrevista recente para a Revista Veja. Quando li, me perguntei se ele trabalhava escondido dentro de alguma gaveta no Instituto Phi.
Desde 2012, respiro o tema doação diariamente – passo meu
tempo tentando criar mecanismos, métodos, ferramentas de comunicação, eventos e
ações para aproximar as pessoas desse tema e, consequentemente, aproximá-las
delas mesmas e do lugar onde moram. Como criar esse senso de comunidade em cada
um? Como aumentar a confiança que dizemos faltar?
Setúbal, que está à frente de projetos filantrópicos na área
da saúde, recentemente tentou criar no Brasil um movimento similar ao The
Giving Pledge, fundado por Bill Gates e Warren Buffett. Ao seu lado, estava o
empresário Elie Horn (fundador da construtora Cyrela), que já faz parte do
The Giving Pledge. Queriam incentivar milionários brasileiros a doar 20% de sua
fortuna. Não conseguiram convencer ninguém.
A desigualdade de renda no Brasil vem crescendo e atingiu,
no primeiro semestre de 2019, o maior patamar já registrado. Segundo pesquisa
divulgada semana passada pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação
Getulio Vargas (FGV/IBRE), o índice que avalia o nível de desigualdade sobe
consecutivamente desde 2015 e, em março deste ano, atingiu 0,6257 – numa escala
de 0 a 1, quanto mais próximo do 1, maior é a desigualdade. Por fim, desde 2012, a renda acumulada dos
mais ricos aumentou 8,5%, enquanto a dos mais pobres caiu 14%.
Retrato da desigualdade: favela de Paraisópolis ao lado do vizinho rico, o Morumbi /Shutterstock
Concordo totalmente quando Setúbal diz que inventamos
desculpas o tempo todo para não doar, e não falo só de dinheiro; falo de tempo,
de interesse por algum tema. Na entrevista, o filantropo destaca que muitos
ricos alegam que “não conseguem escolher uma ONG com medo de que ela não seja
idônea”. Pois eu digo que existe o Phi e várias outras organizações que podem
guiar investidores sociais para que façam boas escolhas e acompanhem os
resultados.
Participo de diversos grupos que me fazem acreditar que,
juntos, podemos resolver nossos problemas sociais. Temos inteligência e tecnologia
para isso. O que nos impede? Por que é tão difícil para as pessoas mais ricas
doarem mais, de forma recorrente e comprometida com uma determinada causa?
Na última semana, me perguntaram: o que fazer com R$ 2
milhões no Rio de Janeiro? Distribuir os recursos para diferentes
projetos? Eu sugeriria que não. Escolha o problema que quer resolver, entenda
ele com profundidade, se comprometa e ataque.
O cobertor é muito curto no Brasil. A sociedade precisa se
organizar. E se importar com o outro é um caminho sem volta – quando você
começa a enxergar o que acontece ao redor, não consegue mais parar. Mas o
primeiro passo é observar seus valores e motivações e acreditar: filantropia é
amor à humanidade.
O céu talvez não seja o limite para o carioca Luiz Fernando
Leal, de 25 anos. O jovem que saiu do Lins de Vasconcelos há quatro anos para
estudar engenharia aeroespacial no Florida Institute of Technology, nos Estados
Unidos, é filho de um professor de educação física e uma motorista de Uber, que
não tinham recursos para custear seus estudos. Luiz Fernando tem a
possibilidade de sonhar tão alto graças a muito esforço pessoal, sim, mas
também ao patrocínio de um investidor social, através do Instituto Phi.
Em 2007, quando tinha 13 anos, Luiz Fernando assistiu a um
show aéreo e decidiu que queria ser piloto de caça. Passou a estudar de domingo
a domingo para tentar uma vaga na Escola Preparatória de Cadetes do Ar (Epcar),
em Barbacena (MG). Passou nos testes escritos, mas a miopia jogou por
terra os planos do carioca, considerado incapacitado para a profissão de
piloto. Desistiu e acabou indo cursar eletrônica no Centro Federal de Educação
Tecnológica (Cefet).
Lá, conheceu o mundo das olimpíadas científicas. Ganhou uma
medalha de ouro na Olimpíada Brasileira de Astronomia e resolveu participar da
Mostra Brasileira de Foguetes. A partir daí, seu sonho ganhou mais altura: em
vez de piloto de aviões, resolveu que faria engenharia aeroespacial e
trabalharia com foguetes. No Brasil, poucas universidades ofereciam o curso na
época – havia uma turma inicial no ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) e
uma na UnB (Universidade de Brasília), mas ele começou a sonhar em ir para os
Estados Unidos e trabalhar na Nasa. O problema é que ele não falava nada de
inglês.
Para conseguir o objetivo, colocou como meta aprender inglês
em dois anos e meio. Estudava gramática sozinho em casa e, para melhorar a
fluência, ouvia a emissora americana ‘CNN’. Então, começou a procurar
faculdades americanas que ofereciam engenharia aeroespacial.
Foi admitido em três universidades americanas, com auxílio
parcial em duas: Florida Institute of Technology e Illinois Institute of
Technology. No Brasil, fez Enem e passou para engenharia eletrônica na UFRJ
(Universidade Federal do Rio de Janeiro) e para sistemas de informação na
PUC-Rio, privada. Nessa última, Luiz Fernando conseguiu bolsa do Prouni.
“Mas quando recebi a notícia da Florida Tech, que fica
perto do Cabo Canaveral (onde há uma base de lançamento de foguetes da Nasa) e
que está no top 10 das melhores faculdades de engenharia aeroespacial do mundo,
não tive dúvidas”, diz.
Luiz Fernando conseguiu bolsa de 50%, num curso que custava
US$ 60 mil por ano, e a família não tinha como custear o restante. A solução
foi fazer uma vaquinha pela internet, o crowdfunding – em dois meses e meio,
ele levantou R$ 30 mil. Mas o valor não incluía moradia e alimentação e o
estudante não conseguiria arcar com esses custos. Então, decidiu trancar o
curso por um ano e mandou e-mail para todos que o ajudaram para devolver o
dinheiro. Ninguém quis – todos mandaram mensagens de incentivo para que ele não
desistisse.
Para não ficar parado, Luiz Fernando se inscreveu na PUC-Rio. Quase um ano depois, perto do prazo final para decidir se retomaria a Florida Tech, amigos da faculdade conseguiram uma reportagem sobre o estudante no jornal de maior circulação do Rio de Janeiro. Foi assim que a história foi parar no Instituto Phi, que fez a ponte entre Luiz Fernando e um investidor-anjo que queria patrocinar os estudos do jovem.
Luiz Fernando sonha com a oportunidade de trabalhar ou conduzir pesquisa na NASA
Atualmente, além do curso de engenharia aeroespacial, que
termina em maio do ano que vem, Luiz Fernando está fazendo uma especialização
conjunta em Matemática Computacional e estudando russo. Ele também foi aceito
para um curso de verão do Massachusetts Institute of Technology, o MIT Summer
Research Program (MSRP), que começa no próximo mês.
“É um programa que dá a oportunidade de se fazer pesquisa
acadêmica no MIT durante o verão para estudantes que são considerados minorias.
No meu caso, por ser latino e de família de baixa renda, pude concorrer às
vagas. O programa é muito intenso, e tem o intuito de ajudar os estudantes a se
prepararem para fazer um PhD e seguir carreira como pesquisador. Além da
pesquisa, o MIT proporciona alojamento, passagens, mentores, grupos de pesquisa
e acesso total aos laboratórios relacionados à cada tema. É realmente uma
oportunidade única.”
Depois de se graduar, os planos de Luiz Fernando são cursar
pós-graduação nos EUA – ele já foi aceito na Florida Tech, mas também vai
aplicar para outras universidades – e sonha com a oportunidade de trabalhar ou
conduzir pesquisa na NASA. Por isso, pretende cursar um doutorado ou até pós-doutorado.
“Eu me vejo desenvolvendo tecnologias ou
aplicações para uso no espaço ou em outros corpos celestes, e tenho um sonho
pessoal de me tornar um astronauta em prol do Brasil”, diz o estudante, que vai
mais longe e fala em ser o primeiro astronauta a ir à Lua. “Caso o Brasil nos
próximos anos volte a fazer parte dos acordos internacionais e redirecione
investimentos, poderá ter direito a mandar seus próprios astronautas. E neste
caso, eu poderia ter a chance de fazer pesquisa e trabalhar na base em solo
lunar”.
O fortalecimento do investimento
social privado depende de um ambiente regulatório que estimule e amplie a
cultura da filantropia no país. Mas, no Brasil, onde as doações representam
apenas 0,2% do PIB – essa proporção é sete vezes maior nos Estados Unidos – um
imposto funciona como uma barreira para a solidariedade. Trata-se do ITCMD
(Imposto sobre Transmissão “Causa Mortis” e Doação), que incide sobre a
transmissão de herança e doações, e é regulado de maneiras diversas em cada um
dos 26 estados e no Distrito Federal, com alíquota variando entre 2% e 8%.
No Rio de Janeiro, desde 2017, as
doações para fundações e organizações da sociedade civil (OSCs) no Rio estão
isentas da incidência do ITCMD. Mas em São Paulo, por exemplo, o
percentual é de 4% e incide quando a doação tem valor acima de R$ 66.325 mil
(2.500 UFESPs). A iniciativa do Rio é importante não só para as OSCs do estado,
mas também como exemplo para outras unidades do país, que em sua maioria não
contam com isenção alguma para a filantropia.
As organizações da sociedade civil dedicadas a causas de
interesse público vêm discutindo como criar um ambiente legal favorável às
doações privadas. No início de abril, o diretor de Relacionamento com
Investidores do Instituto Phi, Marcos Pinheiro, participou de um evento promovido
pela Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR) e pelo Gife para
avançar numa proposta para zerar ou diminuir o imposto:
“Foi apresentado um estudo realizado pela FGV com dados de 75
países. Destes, apenas Brasil, Croácia e Coréia do Sul tributam doações para OSCs.
Dada esta situação, uma série de instituições vem se reunindo para pleitear o
fim da cobrança. Essa última discussão específica foi sobre que estratégia
adotar, tanto no formato de proposta quanto na forma de tramitação”, explica
Marcos, ressaltando que a falta de decisões do judiciário sobre o tema mostra o
quanto ele é secundário, muito devido ao baixo valor arrecadado.
Encontro realizado por Gife e ABCR para discutir propostas para isenção do imposto
No Brasil, dos 27 entes
contribuintes, 14 possuem alíquota fixa, enquanto 13 trabalham com alíquotas
variáveis. Mas só nove estados possuem algum tipo de isenção para OSCs. Assim,
em 2017, foram arrecadados R$ 6,9 bilhões com o imposto no país, sendo que 75%
da arrecadação está concentrada nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas
Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul.
Em todas as unidades federativas,
com exceção do Rio Grande do Sul, o contribuinte do ITCMD é o donatário. No
entanto, dez estados possuem a regra de inversão do contribuinte, ou seja,
quando o donatário não tem domicílio local, o contribuinte passa a ser o
doador.
Apesar de nove estados oferecerem
algum tipo de isenção para doação para filantropia, essas isenções estão normalmente
atreladas a áreas específicas de atuação, como cultura (sete Estados), esporte
ou meio ambiente (quatro Estados) e direitos humanos (três Estados). Além
disso, muitas vezes a isenção está condicionada ao cumprimento de procedimentos
de controversa constitucionalidade e excessivamente burocráticos.