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Projetos Apoiados Entrevistas e depoimentos

Uma ponte no mercado de trabalho para pessoas pretas

No dia 13 de Maio, conversamos com Vitor Del Rey, do Instituto Guetto, sobre os programas da organização para promover equidade racial

O mercado de trabalho brasileiro é um dos terrenos mais áridos para pessoas pretas. Mesmo quando supera os obstáculos educacionais, a população preta tem menos acesso ao mercado de trabalho e menos oportunidades de crescimento. Para transformar esse cenário, em 2019 foi fundado o Instituto Guetto, uma organização social que cria soluções para lideranças e empresas visando a equidade racial.

Desde o mês passado, o Guetto recebe o apoio do Instituto Phi para seu projeto Escola da Ponte para Pretxs. Às vésperas do 13 de Maio, conversamos com o presidente, Vitor Del Rey, sobre este e outros programas da organização que visam garantir a mobilidade social que foi negada às pessoas pretas quando libertadas pela escravatura sem nenhuma política de proteção.

Como foi o seu despertar para a luta antirrascista?

Sou da Baixada Fluminense, filho de mãe preta, que criou os 6 filhos com o dinheiro da máquina de costura. Tive dificuldade de aprender a ler e escrever. Quem me ensinou foi a minha tia Débora, que era professora e tinha um quarto de leitura. Foi ela quem despertou o meu gosto pelos livros. Em 2013, com 26 anos, deprimido depois de perder emprego e namorada, comecei a ler os grandes filósofos da humanidade buscando dar sentido para a minha vida. Fui conversar com um pastor e psicólogo, que me fez duas perguntas: Onde você gostaria de estar daqui a 5 anos? E o que você gostaria de estar fazendo? E eu pensei que gostaria de estar na minha formatura da faculdade – porque depois do ensino médio eu parei de estudar para ficar só trabalhando – e de estar empregado no que me formei. A primeira coisa que fiz depois dessa conversa foi me inscrever no pré-vestibular da Educafro, organização social referência que tem a missão de incluir de pessoas pretas no ensino superior. Ali eu comecei a adquirir consciência racial, com 26 anos.  Mergulhei de cabeça na militância. Eu fui uma criança que odiava que minha pele fosse tão preta, odiava meu cabelo e meu nariz. E aí, na retrospectiva da minha vida, entendi todo o racismo que sofri na escola, na igreja. Agora eu era o cara cursando Ciências Sociais, participando de reuniões com o Ministro da Educação, estava no centro do meu propósito. Hoje penso que, se existe reencarnação, eu quero vir preto de novo todas as vezes.

Como surgiu o Ponte Para Pretxs e quantas pessoas integram atualmente a rede?

Cursei a graduação em Ciências Sociais e o mestrado em Administração Pública na FGV. Na faculdade de ricos, onde muitos alunos tinham pais empresários ou eram empresários, enquanto o Brasil começava a falar sobre a falta de diversidade racial no mercado corporativo. Como eu era ativista, recebia convites para dar palestras em empresas. E começava a palestra perguntando se na companhia havia alguma cláusula que proibia a contratação de pretos para outros serviços além de fazer café, limpar o chão e fazer o crachá de visitantes. As pessoas se assustavam e eu dizia: essa deve ser a explicação para não ter nenhum preto aqui. A resposta era que elas não sabiam onde encontrar os profissionais. Me ofereci, então, para fazer essa ponte. Então, criei em 2014 uma comunidade de Facebook chamada Ponte pra Pretxs, integrada por pessoas pretas que compartilham oportunidades de emprego, estágios, bolsas de estudo nacionais e internacionais. Começamos com 45 pessoas. Hoje, são 45 mil.

E a Escola da Ponte para Pretxs?

Em 2019, a Ponte para Pretxs estava a todo vapor, mas as pessoas pretas ainda não conseguiam emprego. Os empregadores diziam que o problema era falta de qualificação, mas os profissionais tinham ensino superior, então fui perguntar para meus colegas brancos porque eles conseguiam emprego. Falaram que faculdade todo mundo tem, precisávamos de cursos de curta duração de temas como Branding, Storytelling. Comecei a buscar quem podia dar aulas, começando por Excel e Design Thinking. Mas eu não tinha nem computador para mim, como ia arrumar uma sala para essa aula? Fui para o Coletivo Ovelha Negra da FGV e pedi um laboratório com 40 computadores, e tinha muito mais gente interessada. A Escola da Ponte começa aí. Hoje, atua no modelo de Ensino a Distância, com cursos dentro das trilhas tecnologia, competências socioemocionais, línguas, educação corporativa e empreendedorismo.

Antes, você lançou a plataforma Kilombu, que foi um grande sucesso, pode explicar como funciona?

O Kilombu é uma plataforma digital que conecta afroempreendedores com clientes e parceiros comerciais, estimulando o afronegócio e o afroconsumo. Nasceu como ideia em dezembro de 2015 e algumas inquietações que vieram do Ponte para Pretxs. Ele parte das ideias do “Se não me vejo, não compro” e do “Nós por nós”. É uma iniciativa para fazer o dinheiro circular dentro da comunidade negra, tem um forte senso de cooperação. Pessoas no Ponte pediam referências de profissionais pretos, de empresas lideradas por pretos, e percebemos que isso era uma oportunidade. Em fevereiro de 2016, o Kilombu surgia como a primeira startup preta do Brasil e abriu caminho para o nascimento de várias outras.

O Guetto também dá consultoria para a criação de comitês de diversidade em empresas. Como funciona?

O ponto de partida é sempre um diagnóstico organizacional para subsidiar o desenho das iniciativas: identificar lideranças,  criar pautas sobre questões raciais, elaborar um código de conduta, criar canais de denúncias. É um direcionamento para que esses comitês realmente pautem políticas de reparação e promoção da equidade e não sejam só um espaço de encontro. Se a empresa já tem esse comitê, ajudamos no letramento racial para avançar na luta antirrascista.

Recentemente, o Instituto Guetto fez algumas parcerias com algumas organizações internacionais para promover treinamentos, pode nos contar?

Em parceria com a Escola de Empreendedorismo Internacional Leadership Academy Stroud, oferecemos um treinamento na metodologia Lin Six Sigma, adotada por muitas empresas, que usa um esforço de equipe colaborativa para melhorar o desempenho organizacional. A turma tinha 16 alunos e durou cerca de 8 meses, com aulas em inglês traduzidas. Também promovemos um curso de Audiovisual para 17  jovens do Complexo do Vidigal em parceria com a organização social italiana Voice Over. Todos eles ganharam um notebook e tiveram aulas presenciais de criação de roteiro, técnicas de filmagem pelo celular, edição. Foram 7 meses de curso mais 6 meses de acompanhamento.

Este Dia da Abolição da Escravatura, 13 de maio: é um dia para se comemorar? A Abolição está nos livros de histórias, mas ao libertar escravizados sem oferecer nenhuma política de proteção, o racismo foi perpetuado e a gente ainda não vive, nos dias de hoje, a plena libertação.  Quando olhamos para a Carta Universal de Direitos Humanos, vemos que muitos deles ainda nos são negados. A começar pela população em situação de rua ou em ocupações irregulares, que são em sua maioria pessoas oriundas do processo de libertação, jogadas nas ruas com a roupa do corpo. Então é uma data pró-forma, não há o que se comemorar. É mais um dia de denúncia.

Tragédia Yanomami: confira a entrevista com o fundador dos Médicos da Floresta, organização apoiada pelo Instituto Phi

À frente de uma das poucas equipes profissionais que tiveram acesso à terra indígena, Celso Takashi destaca que tratar da contaminação da água é o ponto de partida

No ano passado, a AMDAF – Associação Médicos da Floresta, organização apoiada pelo Instituto Phi, esteve pela primeira vez na Terra Yanomâmi, na Floresta Amazônica, que é atualmente palco de uma tragédia humanitária. A equipe de voluntários, que há seis anos leva tratamento médico de alta qualidade para áreas remotas, atendeu a duas etnias em sete regiões. Desde que voltou da primeira missão, com o apoio financeiro de empresas e pessoas físicas, atendendo aos apelos dos líderes locais, a AMDAF conseguiu mobilizar outras três viagens para Roraima em 2022. Trata-se de uma das poucas equipes profissionais que acessaram o povo Yanomâmi.

Em entrevista ao Instituto Phi, o Dr. Celso Takashi, oftalmologista, cirurgião especializado em catarata e um dos fundadores da AMDAF, conta que nunca havia visto nada parecido com a vulnerabilidade encontrada –  fruto da avanço do garimpo ilegal, que provocou desmatamento, destruição do leito dos rios, contaminação por mercúrio, aumento dos casos de malária, perda da soberania alimentar e desnutrição infantil. Ele destaca que tratar da contaminação da água é o ponto de partida para que o povo Yanomâmi possa viver com saúde. Confira a entrevista:

Como é o trabalho dos Médicos da Floresta e em que regiões atua?

Conectamos profissionais de saúde às necessidades dos nossos povos originários, em especial os que estão em regiões de difícil acesso. Prestamos atendimento médico clínico e cirúrgico, assistência odontológica e oftalmológica. Começamos pela oftalmologia, mas era preciso fazer mais. Sempre trabalhamos com clínicos gerais, pediatras e enfermeiros e depois incorporamos odontologia, ginecologia, infectologia e outras áreas. Dependendo das demandas da região, personalizamos a formação da equipe. Já percorremos o Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso; aldeias do Povo Pataxó, no extremo sul do Estado da Bahia; território Kaiowá, em Dourados (MS); comunidades do leste de Roraima e Terra Indígena do Vale do Javari (AM), além da Terra Yanomami (AM e RR). Regiões bem distintas e com problemas bem peculiares, mas que, de maneira geral, têm uma carência de infraestrutura básica de saúde, falta de indicadores que orientem os profissionais da área e escassez de medicamentos. 

Quantos profissionais já participaram das expedições e quantos atendimentos foram realizados?

Ao longo destes seis anos, mais de 100 voluntários. Eles vêm e vão, alguns participam de algumas expedições e não de outras. Incrivelmente, o limitante não é o profissional médico, temos um voluntariado forte. A parte mais difícil é o backoffice, isto é, a logística e a captação de recursos, porque as ações demandam um custo operacional alto, especialmente o deslocamento para as terras indígenas e a compra de medicamentos. Temos mais de 9 mil atendimentos prestados, dentre consultas médicas, oftalmológicas e odontológicas, mais de 300 cirurgias oftalmológicas e quase 3 mil óculos distribuídos, além de mais de 2 mil procedimentos odontológicos realizados.

Quais os desafios enfrentados pelas ONGs?

Existem as dificuldades logísticas, já que as ONGs que trabalham com povos originários muitas vezes operam em áreas remotas e de difícil acesso, o que pode dificultar a logística de transporte e suprimentos, a exigência de altos custos financeiros, devido ao transporte de equipamentos e equipes, e, muitas vezes, os desafios culturais, como a barreira do idioma, crenças e hábitos diferentes. É imprescindível trabalhar com respeito à cultura e às tradições das comunidades para estabelecer o elo de confiança. Crenças e práticas espirituais diferentes da medicina ‘tradicional’ precisam ser respeitadas. Na maioria das vezes, é importante trabalhar com intérpretes para garantir uma comunicação eficaz.

Como a realidade Yanomami é diferente da dos demais povos indígenas?

É inquestionável o quanto a presença dos garimpeiros contribui para o quadro de desnutrição severa, resultado da contaminação do solo e da fuga da caça, e para a proliferação de doenças na Terra Yanomâmi. A malária é totalmente tratável, mas com a miscigenação, vai havendo uma contaminação sequencial e, como o estado geral de saúde dos indígenas é muito frágil, principalmente o das crianças, que são subnutridas, a doença acaba sendo fatal. As equipes de saúde tentam tratar as verminoses, mas vivendo numa região contaminada, em pouco tempo o indígena é acometido novamente. É um ciclo perverso. E tem ainda a questão do mercúrio que contamina as águas, o que provoca problemas de médio e longo prazo muito graves, que atingem os sistemas esquelético e neurológico. Talvez ainda nem tenhamos tido tempo para ver quais serão todas as consequências. 

Além do combate ao garimpo ilegal, o que é preciso para solucionar o problema?

Há uma carência absoluta de saneamento básico e água segura. A água é contaminada, não só pelo mercúrio, mas também outros patógenos, como vermes,  vírus, bactérias e protozoários. Minha opinião é que é necessário um plano de médio a longo a prazo de saneamento básico, achando um equilíbrio entre preservação da cultura indígena e o mínimo de condições para eles viverem com saúde.  Sem água de qualidade, o risco é tratar os doentes, mas as doenças voltarem. Por isso, começamos a firmar parcerias para buscar soluções. No curto prazo, com algumas startups que disponibilizam filtros portáteis de carvão ativado ou de membrana. Para o médio e longo prazo, estamos conversando com agências sobre parcerias para a construção de sistemas mais robustos e de longa duração, com perfuração de poços e tratamento de água.

Está nos planos dos Médicos da Floresta retornar para a Terra Yanomami?

Com  a intervenção federal e a presença maciça das forças armadas e da equipe do Ministério da Saúde, acreditamos que a ação emergencial esteja sendo bem conduzida. Quando essa força-tarefa começar a se dissipar, melhoras contínuas e o acompanhamento das populações serão fundamentais para que a população se mantenha saudável. Nesse momento, teremos um papel importante para complementar o trabalho que foi iniciado. Paralelamente, estamos planejando ações cirúrgicas no Xingu e no Vale do Javari e também trabalhando para viabilizar nosso projeto de uma unidade móvel, um ônibus que será transformado num consultório médico itinerante. Estamos na fase final de captação de recursos.

No Boletim Phi, leia matéria sobre projetos sociais que apoiam os povos originários

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